Cesar Carvalho
A palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra.
Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo.
uma imagem
Esta charge e o texto que aparece acima foram postados em meu
mural, no Facebook pelo colaborador
deste espaço, Fernando Violin. Fiz um comentário um tanto quanto poético e, a
partir dele, o Fernando levantou algumas questões.
O diálogo ali iniciado exigia outro tipo de espaço. Decidi então
transferi-lo para cá, local mais adequado para uma reflexão sobre mídia.
A história começou quando bati os olhos sobre a imagem e, em
seguida li o texto que me deixou intrigado. Com a imagem, nem tanto.
Ela apenas reflete uma velha querela entre os adeptos da cultura
escrita e os da cultura eletrônica. Pelos traços, percebe-se a leitura nada
ambígua que o desenhista apresenta: a TV, com mais recursos e força tenta arrancar
o cérebro das mãos do livro. Este, coitado, finca seus pés no chão evitando ser
arrastado.
O ponto de exclamação pode ser tanto a manifestação de certa
surpresa pelo livro, diante de uma disputa inesperada, quanto pela diferença
entre um objeto comunicacional e outro.
Há ainda outra leitura possível, o livro sendo substituído pela
TV.
Seja qual for a leitura, ela apenas reitera certo senso comum que
coloca a TV como vilã e o livro como vítima. Posição conservadora e nostálgica:
o livro com a função mítica de civilizar o homem. Posição reacionária: não
reconhecer nas novas mídias eletrônicas, a TV é apenas uma delas, um novo
processo de socialização e cultura fundado não mais na palavra escrita, mas na
fruição eletroeletrônica dos meios de comunicação, onde a palavra também se insere.
Nem melhores, nem piores. Apenas novas maneiras de configurar as
relações humanas.
Desde sua invenção, a escrita revelou-se com enorme potencial para
organizar e racionalizar as atividades humanas. Não à toa, a maioria das plaquetas
com os primeiros escritos sumérios eram com informações contábeis. Felizmente,
dentre elas encontrou-se também o primeiro registro de uma história literária, A epopeia de Gilgamesh.
Escrita, a palavra torna-se extensão do olho, cria e se integra a
um dispositivo autorregulador que exige linearidade, conectividade lógica e
causal. Começo, meio e fim. Compreensão intelectual - mental - dos códigos. Daí
a palavra impressa, como bem o diz McLuhan, ser um meio quente. Exige pouca
participação dos sentidos de quem a lê.
Já com a TV as coisas são
diferentes. Os feixes de luz que conduzem a comunicação interagem com o
receptor em todos os níveis, estimulando todos os sentidos. Mais do que
intelectual, a experiência televisiva é epidérmica. É o corpo, não a mente, que
reage aos fluxos elétricos.
Por milênios, treinamos nosso cérebro de acordo com a palavra impressa.
Livros, jornais, revistas fizeram parte do processo de socialização do ser
humano adaptando-o à vida industrial, lógica e racional.
Com a emergência da era eletrônica, nossos cérebros agora se
redefinem a partir das experiências sensórias. A palavra escrita inscreve-se na
mídia eletrônica como um elemento a mais do processo sistêmico de comunicação.
Ainda pouco perceptível, as mídias eletrônicas redefinem o próprio sentido da
leitura.
O que se perde
é a primazia do livro, mas não o livro.
Eis porque
considero inútil esta briga entre
palavra escrita, mídia impressa e mídia eletrônica.
É uma discussão
que não explica, por exemplo, os processos de transformação que se vive nesta
nova cultura eletrônica e digital.
o texto
Quando, no
início deste post chamei sua atenção para o incômodo que o
texto acima da imagem me provocava. Na verdade, a palavra correta que deveria
usar aqui é incomodado.
Sobre o autor,
não tenho qualquer referência. Consultei seu mural no Facebook e não encontrei nenhuma pista que se relacionasse com o
texto. Ou, pelo menos, me ajudasse a resolver o incômodo com aquelas palavras.
A primeira
frase é brilhante: a palavra deriva da
própria palavra. Palavra gera palavra, signo gera signo e a linguagem se
constrói neste círculo vicioso, um dispositivo que se autogera e se
autorregula.
O problema veio
com a segunda frase: se a palavra não se parecer com ela mesma, vai se parecer
com quem, ou o quê?
A palavra,
simulacro de per se, só se reflete no
espelho se diante deste for pronunciada. A imagem refletida é a de quem fala.
De alguém que olhando a si mesmo, produz desde o próprio interior, de seu corpo,
a linguagem.
Refletidas, as
imagens se tornam reais no momento mesmo em que a linguagem as nomeia
especulares.
A palavra
especular tem um duplo significado.
Um ligado à
imagem do espelho, reflexo etéreo, difuso; o outro é o nome de exame clínico onde se
utilizam espelhos para dar visibilidade às entranhas do paciente. Ambos são
adequados para significar a palavra.
O primeiro
porque ela é sempre um simulacro. Coloca-se sempre no lugar do real, do vivido,
experimentado. O segundo, o especulo, revela, em suas imagens, a fonte
produtora da palavra: o corpo.
Acredito que o
autor se propôs uma tarefa difícil: atingir a palavra. Como é possível atingir
algo que está dentro da gente?
Diante destas
considerações, resolvi meu incômodo.
E coloquei como comentário no Facebook:
palavra produz palavra
|
cada vez que se olha no espelho
|
se parece comigo mesmo.
|
Uma resposta poética ao desconforto das
palavras.
Este foi o pontapé inicial.
Logo depois, o Fernando devolveu a bola:
Fernando Violin Eu to
pensando naquilo que o Kerckhove fala sobre a televisão e os computadores
mudarem a localização de processamento de informação de dentro dos nossos
cerebros para ecrãs a frente dos nossos olhos.
No próximo post,
continuo a conversa.