sexta-feira, 13 de julho de 2012

Reflexões eletrônicas: eu e o espelho


Cesar Carvalho

         A palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. 
Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo.

uma imagem

Esta charge e o texto que aparece acima foram postados em meu mural, no Facebook pelo colaborador deste espaço, Fernando Violin. Fiz um comentário um tanto quanto poético e, a partir dele, o Fernando levantou algumas questões.
O diálogo ali iniciado exigia outro tipo de espaço. Decidi então transferi-lo para cá, local mais adequado para uma reflexão sobre mídia.
A história começou quando bati os olhos sobre a imagem e, em seguida li o texto que me deixou intrigado. Com a imagem, nem tanto.
Ela apenas reflete uma velha querela entre os adeptos da cultura escrita e os da cultura eletrônica. Pelos traços, percebe-se a leitura nada ambígua que o desenhista apresenta: a TV, com mais recursos e força tenta arrancar o cérebro das mãos do livro. Este, coitado, finca seus pés no chão evitando ser arrastado.
O ponto de exclamação pode ser tanto a manifestação de certa surpresa pelo livro, diante de uma disputa inesperada, quanto pela diferença entre um objeto comunicacional e outro.
Há ainda outra leitura possível, o livro sendo substituído pela TV.
Seja qual for a leitura, ela apenas reitera certo senso comum que coloca a TV como vilã e o livro como vítima. Posição conservadora e nostálgica: o livro com a função mítica de civilizar o homem. Posição reacionária: não reconhecer nas novas mídias eletrônicas, a TV é apenas uma delas, um novo processo de socialização e cultura fundado não mais na palavra escrita, mas na fruição eletroeletrônica dos meios de comunicação, onde a palavra também se insere.
Nem melhores, nem piores. Apenas novas maneiras de configurar as relações humanas.
Desde sua invenção, a escrita revelou-se com enorme potencial para organizar e racionalizar as atividades humanas. Não à toa, a maioria das plaquetas com os primeiros escritos sumérios eram com informações contábeis. Felizmente, dentre elas encontrou-se também o primeiro registro de uma história literária, A epopeia de Gilgamesh[1].
Escrita, a palavra torna-se extensão do olho, cria e se integra a um dispositivo autorregulador que exige linearidade, conectividade lógica e causal. Começo, meio e fim. Compreensão intelectual - mental - dos códigos. Daí a palavra impressa, como bem o diz McLuhan, ser um meio quente. Exige pouca participação dos sentidos de quem a lê.
 Já com a TV as coisas são diferentes. Os feixes de luz que conduzem a comunicação interagem com o receptor em todos os níveis, estimulando todos os sentidos. Mais do que intelectual, a experiência televisiva é epidérmica. É o corpo, não a mente, que reage aos fluxos elétricos.
Por milênios, treinamos nosso cérebro de acordo com a palavra impressa. Livros, jornais, revistas fizeram parte do processo de socialização do ser humano adaptando-o à vida industrial, lógica e racional.
Com a emergência da era eletrônica, nossos cérebros agora se redefinem a partir das experiências sensórias. A palavra escrita inscreve-se na mídia eletrônica como um elemento a mais do processo sistêmico de comunicação. Ainda pouco perceptível, as mídias eletrônicas redefinem o próprio sentido da leitura.
O que se perde é a primazia do livro, mas não o livro.
Eis porque considero  inútil esta briga entre palavra escrita, mídia impressa e mídia eletrônica.
É uma discussão que não explica, por exemplo, os processos de transformação que se vive nesta nova cultura eletrônica e digital.

o texto

Quando, no início deste post  chamei sua atenção para o incômodo que o texto acima da imagem me provocava. Na verdade, a palavra correta que deveria usar aqui é incomodado.
Sobre o autor, não tenho qualquer referência. Consultei seu mural no Facebook e não encontrei nenhuma pista que se relacionasse com o texto. Ou, pelo menos, me ajudasse a resolver o incômodo com aquelas palavras.
A primeira frase é brilhante: a palavra deriva da própria palavra. Palavra gera palavra, signo gera signo e a linguagem se constrói neste círculo vicioso, um dispositivo que se autogera e se autorregula.
O problema veio com a segunda frase: se a palavra não se parecer com ela mesma, vai se parecer com quem, ou o quê? 
A palavra, simulacro de per se, só se reflete no espelho se diante deste for pronunciada. A imagem refletida é a de quem fala. De alguém que olhando a si mesmo, produz desde o próprio interior, de seu corpo, a linguagem.
Refletidas, as imagens se tornam reais no momento mesmo em que a linguagem as nomeia especulares.
A palavra especular tem um duplo significado.
Um ligado à imagem do espelho, reflexo etéreo, difuso; o  outro é o nome de exame clínico onde se utilizam espelhos para dar visibilidade às entranhas do paciente. Ambos são adequados para significar a palavra.
O primeiro porque ela é sempre um simulacro. Coloca-se sempre no lugar do real, do vivido, experimentado. O segundo, o especulo, revela, em suas imagens, a fonte produtora da palavra: o corpo.
Acredito que o autor se propôs uma tarefa difícil: atingir a palavra. Como é possível atingir algo que está dentro da gente?
Diante destas considerações, resolvi meu incômodo.
E coloquei como comentário no Facebook:
palavra produz palavra
cada vez que se olha no espelho
se parece comigo mesmo.
Uma resposta poética ao desconforto das palavras.
Este foi o pontapé inicial.
Logo depois, o Fernando devolveu a bola:
Fernando Violin Eu to pensando naquilo que o Kerckhove fala sobre a televisão e os computadores mudarem a localização de processamento de informação de dentro dos nossos cerebros para ecrãs a frente dos nossos olhos.
No próximo post, continuo a conversa.


[1] Leia-se os estudos de N.K.Sandars sobre as descobertas das plaquetas contendo A epopeia de Gilgamesh. 3ª. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 14.

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